Na tarde do sábado, 4 de maio, e a manhã do domingo, 5, os membros da CNBB que estão reunidos em Aparecida (SP), em sua 57ª Assembleia Geral vão participar de um retiro espiritual. O arcebispo Dom José Tolentino Mendonça, arquivista e bibliotecário do Vaticano. Ele vai orientar quatro meditações importantes e, no sábado, os bispos participam de uma celebração da Reconciliação. A missa de encerramento do retiro será celebrada às 11h30 do domingo, no Santuário Nacional.

Pregador

O pregador também orientou o retiro do Papa Francisco e dos trabalhadores da Cúria Romana, no ano passado. Segundo o jornal português “Publico”, dom José Tolentino é biblista e investigador, além de poeta e consultor do Conselho Pontifício para a Cultura. No seu livro “Pequeno Caminho das Grandes Perguntas”, lançado em  Portugal em setembro de 2017, ele convida os leitores a sentarem-se num banco de jardim com tempo para encarar as grandes perguntas que nos precedem a todos, avisando logo à partida que as respostas são o que menos interessa nessa viagem sentada, cujo objectivo seria então arranjar espaço para o silêncio e para o espanto.

Numa crônica publicada no mesmo ano no semanário português “Expresso”, ele explicava que “a arte de parar é uma aprendizagem indispensável à sobrevivência”. Da poesia ao ensaio, a sua obra é atravessada, na opinião do padre jesuíta Vasco Pinto de Magalhães, “pelo tom da meditação e da procura de olhar a realidade com olhos de ver”. O jesuíta recuperou assim depressa do espanto de ver um português chamado a orientar a meditação do Papa, tanto mais que Tolentino “é respeitado internacionalmente pelas suas intervenções no campo da cultura e pertence a uma comissão pontifícia”.

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Confira uma entrevista concedida ao jornal “Público”, em abril do ano passado e publicada aqui no Brasil no portal da IHU Unisinos. Nesta entrevista ele fala do retiro com o Papa e de suas obras.

Comecemos por uma pergunta impressiva: o que se sente ao estar diante do Papa, convidado por ele, a orientar um retiro quaresmal?

Sentem-se três coisas. A primeira é uma grande humildade, porque toda a palavra que dissermos é atravessada pela densidade daquela vida, do que ele representa – e poucas vezes na minha vida me senti tão pequeno. Depois, um grande sentido de serviço e responsabilidade: estava ali porque ele me convidou. E por fim, por estranho que pareça, uma grande simplicidade e naturalidade: eu era um padre a prestar serviço a outros padres e era mais um a fazer o que qualquer um pode fazer. Sentia-me a fazer coisas muito normais.

E também a fazer o caminho que interessa ao Papa: como ele escreve no prefácio, as meditações que propôs cruzam o estudo da Bíblia com referências literárias, poéticas, a atualidade e o quotidiano. Há um apelo a uma reflexão que seja também o que o Papa propõe?

Claramente. Quando ele me convidou, disse-me duas coisas: que me sentisse muito livre e que fosse eu próprio. E que só ajudaria com estas duas condições. Aceitei isso com grande verdade, no sentido de que a minha experiência de vida aparece muito refletida, tal como as minhas leituras ou o que me parecem ser os caminhos do presente e do futuro da Igreja…

Isso é feito num grande diálogo com o magistério do Papa Francisco e o que ele representa, com o impulso reformista que ele introduz a este tempo do catolicismo.

Estes cruzamentos dão-me a medida do concreto. A teologia não pode ser uma ideologia nem a espiritualidade se pode confundir com um conjunto de abstrações. Qual é o contributo da literatura? É trazer uma “concretude” muito grande, é trazer histórias de vida, modelos do vivido, do pessoal, do individual para uma reflexão de conjunto. Nesse sentido, é um papel muito grande, porque é uma espécie de zoom sobre a realidade. É muito envolvente sentirmo-nos dentro de uma história.

A grande vantagem de utilizar o texto bíblico e a tradição espiritual cristã, mas também a antropologia, o cinema, a literatura, a pintura e as artes em geral é permitir uma tradução existencial da mensagem cristã.

E isso é necessário?

Sim. Quando se propõem exercícios espirituais, claramente não é para ensinar doutrina às pessoas. Aquelas pessoas é que me poderiam ensinar doutrina. Por isso é que essa chamada ao real e ao concreto me parecem traços indispensáveis.

O seu livro anterior, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, acaba a falar de ampliar o espanto como legado daqueles que se amam. Estas meditações começam com o tema “aprendizes do espanto”. Que espanto ou espantos se devem aprender?

O grande perigo, numa viagem interior, é habituarmo-nos à nossa própria vida e a rotina acabar por dominar. É um fazer por fazer, os acontecimentos são mecânicos. Na vida dos padres, por exemplo, há um retiro anual, que o próprio calendário impõe. E, a dada altura, é como se um piloto automático estivesse a comandar a nossa vida e já não fôssemos nós próprios.

O espanto é poder abrir os olhos, poder dar-se conta do que somos, do que está perto de nós, do que está longe. É ganhar um olhar crítico sobre a nossa própria realidade, perceber que muitos gestos, à custa de os repetirmos, se tornam tiques e manias, e se esvaziam da autenticidade fundamental. Por isso, a primeira palavra do retiro é esse “espanta-me”, mais uma vez. Como se pudéssemos ganhar um olhar novo, um primeiro olhar sobre a nossa própria existência. É essa frescura que permite a infiltração do espírito nas nossas vidas.

… E que leva ao tema da sede. Num outro livro anterior, A Mística do Instante, já escrevia que bebemos de muitas fontes mas a sede volta sempre. A que sedes o cristianismo deve hoje dar resposta?

Escolhi o tema da sede porque ele me parece indicar um patrimonio fundamental do crer. Crer não é satisfazer-se, não é ter as soluções nem ter encontrado as respostas. Crer é habitar o caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura. Nesse sentido, mais do que estar saciados de Deus, os crentes aprendem os benefícios da sede, a importância de viverem no desejo de Deus, na espera de Deus. Um crente não possui Deus, não o domestica com os seus rituais e as suas crenças. Ele vive na expectativa de Deus e da sua revelação que, em grande medida, é sempre surpreendente, é sempre inédita. Por isso, a sede é um lugar necessário no itinerário cristão, que precisamos de revisitar.

A dada altura, falo da necessidade de revalorizarmos mais uma espiritualidade da sede. E percebermos que, mais do que estar a produzir respostas para perguntas que não escutamos dentro de nós e dentro dos outros, o importante é perceber a sede como uma palavra que Deus nos diz. Deus coloca-nos numa situação, em ato, em experiência, mais do que numa montra ou pódio onde a vida já aparece concluída e rematada. O tempo da Igreja, o tempo da crença, é um tempo de inacabamento, de construção, é um estar a caminho, é um fazer-se. A sede desempenha, aí, um papel fundamental. E aí pergunto: qual é a primeira sede?…

Qual é a primeira sede?…

A primeira sede é a sede da sede, viver não na administração das nossas certezas, mas numa espécie de fronteira, numa espécie de limiar, que faz do ato de crer ou do ato de rezar uma forma de atenção: de atenção a nós próprios, de atenção à vizinhança de Deus, de atenção aos outros, à história…

No final do retiro, o Papa disse-me: “Uma das coisas que achei importante foi dizer que Deus tem sede das nossas sedes.” Esse é um bom resumo da proposta que fiz.

Um dos aspectos da atenção aos outros passa por uma das faces da sede espiritual: a solidão. A dado passo, cita uma história intensa do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que acaba com a criança hospitalizada a pedir ao médico “diga a alguém que estou aqui”. A companhia e o abraço do outro são necessidades maiores?

São necessidades maiores, também para o clero e para a Igreja, que foram os primeiros destinatários desta palavra. É muito fácil, em todas as condições de vida, experimentarmos a radical solidão do existir e não encontrarmos interlocutores para as grandes questões, para as grandes sedes que trazemos no coração. Essa solidão torna-se uma espécie de peso, de custo existencial, com o qual nos conformamos: vivemos como podemos viver.

São necessários momentos de revitalização na nossa vida, de questionamento mais profundo, de pausa, como os exercícios espirituais podem ser. Momentos que nos ajudem a romper com o conformismo e a ouvir a solidão profunda que temos dentro de nós. Não escutaremos a voz de Deus se não escutarmos também a voz dessa ferida, desse peso de solidão que muitas vezes nos esmaga, que muitas vezes condiciona a nossa esperança, condiciona a nossa alegria e que é preciso olhar de frente e desconstruir.

Fala da relação como um alimento invisível, que passa pela hospitalidade, pela palavra, pelo cuidado e afecto com os outros. Mas, hoje, chamamos amizade a relações com desconhecidos. Como trabalhar a relação, tendo em conta esta realidade?

A grande ideologia dominante, hoje, é o consumo. Já não é tanto uma ideologia política, mas uma transversalidade que faz de nós consumidores de alguma coisa e continuamente estimulados a isso. Qual é o problema da sociedade de consumo? É que ela não suporta a sede, não suporta o desejo. Todos os desejos são para ser realizados no mais imediato possível. A satisfação dos nossos desejos é colocada como uma promessa fantasma ao alcance da mão.

Qual é o problema? É que já não há espaço para grandes sedes, para grandes desejos, porque vivemos numa sociedade de satisfação permanente. E de uma satisfação enganadora porque, verdadeiramente, um desejo que se possa satisfazer de um momento para o outro não é um verdadeiro desejo humano. Por isso, cada vez mais sentimos que não há espaço para que a vida alimente grandes sonhos, grandes paixões, grandes viagens, grandes utopias, grandes generosidades…

Ficamos presos ao imediato…

Isso faz de nós pessoas mais desencontradas consigo mesmas. Esta sociedade da satisfação imediata deixa-nos muito insatisfeitos porque vivemos num mecanismo de viciamento e impulso, e não vivemos por ter alimentado, dentro de nós, de forma paciente, longa, discernida, demorada, um grande desejo, uma verdadeira vontade, um sopro de liberdade, de criatividade. Mas vivemos neste condicionamento.

Isto reflete-se em todas as dimensões da nossa vida: é assim com as necessidades elementares da vida e é assim com as nossas relações uns com os outros, que acabam por ser, também, de consumo. Acabamos por nos consumir uns aos outros e não há um verdadeiro encontro, uma verdadeira espera, uma hospitalidade autêntica do outro. Diminuímos a nossa capacidade de esperar uns pelos outros: ou é no imediato ou já não funciona. E essa aceleração antropológica – que as tecnologias, os emails, os telefones têm acentuado – seca-nos por dentro e desumaniza-nos. Uma sociedade de consumo é, fundamentalmente, uma sociedade desumanizada.

Este tema traz à memória muitas referências bíblicas: o rio e regava o jardim do Éden, o poço de Jacob, o veado que suspira pela torrente das águas, nos Salmos, o encontro de Jesus com a samaritana, a última frase do Apocalipse…

A Bíblia é um manual da sede. Podemos ver a Bíblia inteira a partir dessa dinâmica da sede e da água, mas de uma água que se acorda dentro da própria sede. “Aos sedentos, eu darei a beber a água viva”, diz Jesus – que é, no fundo, a água do espírito. Quando Jesus diz “tenho sede”, a seguir entrega o espírito.

Isso é alguma coisa que acontece na dinâmica da nossa sede: a nossa sede tem muito a ensinar-nos. Precisamos de confiar mais na nossa sede e na sede do mundo. A Igreja tem de confiar mais na sede do mundo e perceber que essa sede, que está no coração do homem, é aliada de uma procura espiritual mais autêntica, mais radical.

Cita o profeta Jeremias, que diz que o povo cometeu um duplo crime: afastou-se de Deus, “nascente de águas vivas”, e construiu cisternas rotas, que não retêm as águas. Há um discurso cristão que identifica a secularização com o afastamento de Deus. Esta leitura é correta ou reflecte as muitas sedes das pessoas?

No caso do profeta Jeremias, ele fala dos equívocos e das ambiguidades que fazem parte do caminho. Falar da sede não é um discurso puro nem linear. É um discurso onde está o confuso que também nos habita, o confuso do mundo que é preciso iluminar e purificar. Para mim, é claro que temos de olhar para a secularização e as culturas contemporâneas não como uma barreira para o anúncio de Deus, mas identificando, no coração do homem, aquilo que é o aliado de um discurso de fé, de confiança, de misericórdia. Isso passa por sintonizar com a sede que existe dentro do coração humano. Porque a grande questão é antropológica, existencial. No fundo, trata-se de saber como tornar o discurso de Deus relevante para as nossas sociedades, em grande medida indiferentes, que se consomem nesta espécie de mercantilismo global que nos domina. Ou de como acordar a vida, como acordar um desejo de absoluto, como acordar uma sede de mais, uma sede de santidade, como diz o Papa na exortação apostólica Gaudeteet exsultate que acaba de publicar.

E como se faz isso?

Valorizando a sede. A sede não é um tópico apenas religioso, a sede interessa a toda a gente. Não somos pessoas se não olharmos com atenção para a nossa sede e não a estimarmos ou potenciarmos. O que nos abre horizontes é a nossa sede, não são as certezas provisórias que vamos encontrando.

É o que diz Saint-Éxupery na epígrafe que coloca no livro: “Se quiseres construir um navio”, detém-te primeiro a acordar nos operários “o desejo do mar distante e sem fim”?

No princípio está o desejo. É esse desejo e essa sede que são o motor de um caminho. Se quisermos conhecer uma pessoa, devemos perguntar que sedes é que ela transporta, que sedes nós permitimos que nos habitem. São essas sedes – que não podem ser a sede de poder, a sede do ter, do dominar, do consumir, da violência, mas a sede de justiça, de solidariedade, de bem, de beleza – que são capazes de nos avizinhar do sentido, da verdade da própria existência. Ignorar a nossa sede é desconhecer-se a si próprio, é ser um estrangeiro da sua própria vida.

Essa reflexão sobre o desejo, que vem desde um dos seus primeiros ensaios bíblicos, As Estratégias do Desejo é surpreendente, na relação com o tema da sede. Quando cita nomes como Emily Dickinson, a dizer que “a água é-nos ensinada pela sede”, ou S. João da Cruz e outros místicos, damo-nos conta de que o desejo não se opõe à razão e ao conhecimento. Pelo contrário, confunde-se com eles…

É bonito ver que o primeiro ato de Deus é o da criação. E da criação individual, de cada um: da criação daquele Adão e da criação daquela Eva e das outras criaturas. Nós não somos cópias uns dos outros, não somos simplesmente uma repetição, uma massa, uma multidão indiferenciada. Pelo contrário: cada um de nós é único, em cada um de nós há uma revelação de Deus que é singular, cada um de nós é uma estação do mundo, é um primeiro dia da história.

Por isso é tão importante começar por aí. Para mim, a experiência da fé é comunitária, mas potencia a pessoa, o acordar de cada um, o caminho que cada um pode fazer. Nesse sentido, é fundamental perguntar a cada um: qual é o teu desejo? O que transportas dentro de ti? O que procuras? Porque, na maior parte das vezes, não nos é concedida essa possibilidade de expressão e desabituamo-nos tanto dela que, quando nos fazem essa pergunta, nós estremecemos.

Tenho uma história curiosa com a Maria Gabriela Llansol. Ela leu um texto meu, telefonou-me e marcou um encontro em Sintra. Apanhei o comboio, ela foi esperar-me à estação. Quando saltei do comboio, cumprimentamo-nos e começamos a caminhar. Fez-se um silêncio e ela perguntou-me: “Tolentino, o que é que procuras?” Fiquei num embaraço enorme, porque não esperava aquela pergunta, não vinha preparado para ela. Aquele embaraço deu-me muito que pensar depois e ainda me lembro dele porque é possível andarmos uns com os outros e cumprir uma vida aparentemente muito cheia e nunca respondermos, com verdade, à pergunta: “O que procuras? O que desejas? O que trazes dentro do teu coração?” Isto não são detalhes de uma vida. Por aqui passa o essencial do que somos, na nossa construção. Por isso, a pergunta pelo desejo é muito importante e a fé tem de ser também uma escola do desejo, onde se aprende a desejar, a desejar mais, a desejar melhor, a desejar maior…

Falar-se em desejo, em contexto cristão, nem sempre é bem visto. O tema da sede pode ajudar os cristãos a reconciliar-se com a ideia do desejo?

Há um deficit de sede. Mesmo nas nossas comunidades cristãs, há um deficit de sede e de desejo. Quais são os sonhos que os cristãos têm? O que querem eles para o mundo, para a vida, para a sociedade, para eles mesmos, para os outros? Que sonhos têm hoje os jovens? Que visões têm os mais velhos? O que procuram verdadeiramente os adultos? A sede é muito importante porque contraria um certo catolicismo de manutenção, de subsistência, de auto-referencialidade, que é uma espécie de pausa, de torpor, que bloqueia o próprio espírito. O espírito desassossega o cristianismo e fá-lo muito também através da sede. Se pensarmos nos grandes santos, nos místicos, nos cristãos empenhados, naqueles que ajudaram a escrever páginas de história, são sedentos, são pessoas que ardem dentro de um desejo e se deixam viver dessa maneira.

Cito, por exemplo, Dorothy Day, uma mulher espantosa, cujo processo de beatificação foi já aberto. Foi sindicalista, anarquista, feminista, esteve presa muitas vezes. E era católica, só que viveu um catolicismo social muito empenhado na causa dos trabalhadores, dos sindicatos…

… dos sem-abrigo…

… dos sem-abrigo. E ela dizia isto: na Idade Média, havia por exemplo 500 leprosarias em França, geridas pela Igreja. Hoje, perante problemas que são as novas lepras – ela falava, por exemplo, do desemprego e da fragilidade e da precarização do trabalho –, perguntava: o que fazem os cristãos em relação a este problema concreto? Quantos lugares novos nós abrimos para acolher, pensar e reinterpretar as feridas e os dilemas da nossa época?

O Papa tem sido um motor extraordinário no catolicismo contemporâneo, porque ele tem trazido essa sede, esse desejo muito grande, esse sonho de um cristianismo capaz de ultrapassar-se, de sair da sua cerca e de gerar uma cultura de encontro, de serviço à humanidade. Ele é também, nesse sentido, um mestre da arte da sede.

Na exortação que publicou segunda-feira passada (alegrai-vos e exultai), ele volta a repetir que a defesa da vida deve ser da vida toda. Ou seja, também das condições de vida que as pessoas têm…

Exatamente. Não podemos limitar a defesa da vida apenas a situações particulares do curso da existência, mas temos de apoiar a pessoa em todas as circunstâncias, em todos os momentos. Esse é um chamamento muito forte do Papa Francisco, porque há uma fidelidade ao humano a que o contrato cristão nos obriga: ver em cada ser humano um irmão e não viver, como o Papa diz, um cristianismo que sente uma certa repulsa da humanidade ou de certos lugares da humanidade.

O cristianismo tem de abraçar a humanidade dos outros como ela é e, especialmente – e isso o Papa tem reforçado muito – a humanidade pobre, a humanidade fragilizada, a humanidade mais vulnerável, numa opção clara, sem ambiguidades, pelos mais pobres. Esse é um desafio, uma sede, um sonho, que ele recoloca, com muita intensidade, na Igreja do nosso tempo.

Santo Agostinho diz que “a fragilidade de Jesus veio socorrer-nos” e Simone Weil escreve que “em Jesus, Deus também se apresenta como mendigo do homem”. É necessário outra perspectiva sobre Deus?

A forma como representamos Deus acaba por determinar muito a nossa auto-representação junto dos outros. Se temos a ideia de um Deus juiz, de um Deus castigador da história, essa representação do poder acabará por ser o traço distintivo da nossa presença e do nosso anúncio.

Mas o Deus de Jesus é um Deus pobre, é um Deus desconcertantemente frágil, vulnerável. Um grande teólogo do século XX, Dietrich Bonhoeffer, diz que Jesus vem anunciar um Deus fraco, um Deus frágil. O Deus dos cristãos é um Deus frágil. É um Deus que se anuncia não na força, não no poder, não no exercício de uma transcendência que nos esmaga, mas no vagido de uma criança que nasce na manjedoura de Belém ou no grito do crucificado no alto da cruz. O grito da criança ou do crucificado representam-nos um Deus diferente.

Por isso é tão importante que a teologia nos ajude a fazer um exercício crítico em relação às imagens de Deus, que têm de ser purificadas, para que a nossa inscrição no mundo traduza o Deus de Jesus Cristo e não um Deus que a própria vida de Cristo veio negar.

Mas como pode a fragilidade socorrer se, no quotidiano, a nossa experiência é a oposta? Precisamos de abrigos fortes contra a força da natureza, de estar fortalecidos no trabalho, nas relações sociais… Como pode ser um Deus frágil a socorrer-nos?

É interessante o que Simone Weil diz na hora da sua conversão: que se converte porque Deus não é o Deus dos fortes, mas o Deus dos fracos. E, num percurso de fé autêntico, há sempre um momento em que se percebe que Deus nos esvazia as mãos e esse é o maior dom que ele nos dá. A fragilidade faz-nos experimentar o abandono, a entrega, uma confiança que é verdadeiramente radical. E não assenta no que já tenho, mas no exercício de colocar a minha vida na dependência do amor de Deus, na dependência do que Deus pode ser para mim.

Esse é o exercício espiritual mais profundo. Claro que, na nossa vida, precisamos de confirmação, de mediações que permitam que a vida aconteça de forma estável, de forma segura. Mas, ao mesmo tempo, não podemos substituir essa nudez necessária, essa fragilidade do encontro mais radical connosco próprios por falsas respostas ilusórias, que nos afastam de nós mesmos. Em última análise, nascemos e morremos e estamos perante o mistério da vida. Perante ele, não temos grandes respostas nem grandes armaduras senão a descoberta do dom, a descoberta da sede.

Nem para tragédias inomináveis como a Shoah ou para grandes desastres ou massacres?… Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz, escrevia, dirigindo-se a Deus: “Uma coisa se vai tornando cada vez mais clara para mim: que Tu, Deus, não nos podes ajudar, que temos de ser nós a ajudar-te para nos ajudarmos a nós próprios.”

Essa é uma das grandes frases do século XX, pronunciada por esta mulher num campo de concentração. Ela percebe que o mais importante não é escapar a um destino, não é salvar-se a si mesma e salvar a sua pele, não é esperar que Deus resolva de fora os meandros da história, mas perceber que a nossa vida é para ajudar Deus a fazer, a transformar a história, a alargá-la… Isso faz-nos olhar para a vida de uma outra forma. Sem essa descoberta, a nossa vida é uma lista de reivindicações, de desejos imediatos, acaba por ser algo que não sabemos o que fazer com ela. Quando descobrimos que a vida pode ser um dom, cúmplice de um milagre maior, como Etty descobriu, a vida ganha outra dimensão. Por isso, nas últimas palavras que ela escreve, ao sair do campo de concentração para Auschwitz, onde havia de morrer, ela testemunha isto: “Saímos do campo de concentração cantando…”

Podemos sair da vida de muitas maneiras. Mas, para sair cantando, havemos de ter abraçado o paradoxo, a contradição do que é viver. E, no fundo, é perceber que somos mais quando somos menos, que é dando que recebemos, que é perdoando que somos perdoados, que é na oferta radical de nós mesmos e na hospitalidade que fazemos à vida que, no fundo, somos hóspedes acolhidos em festa pela mesma vida.

Regressamos à última frase do Apocalipse: “Quem tem sede, aproxime-se e beba gratuitamente.” Há duas palavras que atravessam as suas meditações: o dom e o serviço. São duas palavras identitárias da condição humana e da condição cristã?

O caminho da felicidade é esse: é quando percebemos que a vida é dom, que é relação, que não é uma ilha, que a nossa vida é fruto de uma dádiva porque recebemos de outro e, ao mesmo tempo, é transmissão dessa chama e desse espírito…

Quando percebemos o caminho de realização, não para consumir mas para consumar a nossa vida, entendemos a vida como um serviço, seja ele qual for. Mas um serviço marcado pela gratuidade, pela generosidade, pelo amor… Quando temos o privilégio de servir, de forma desmedida, também recebemos o tamanho da nossa vida.

O título de um dos seus poemas e da sua antologia poética, diz: “A noite abre meus olhos”. São João da Cruz fala da fonte que, no meio da noite, pode iluminar a sede. O que pode a sede abrir?

Isso mesmo que São João da Cruz diz: “De noite iremos, de noite, ao encontro da fonte, porque só a sede nos ilumina.” Quando os nossos olhos se abrem na noite – a noite é também o símbolo do precário, da nossa fragilidade, do que é maior do que nós, do que não tem resposta –, quando abrimos os olhos percebemos que somos chamados a uma experiência de vida autêntica. Esse sentir-se chamado é alguma coisa que a escuta profunda de nós próprios permite.

Essa disponibilidade para a escuta é um pôr-se num dinamismo de mudança; é dizer que Deus é que conduz a história, que não somos nós, com os nossos olhares parciais, a conduzir a história, mas o próprio Deus. Mas, para isso, temos de abrir os olhos e sentir que há uma iluminação, que só acontece quando nos expomos. Os exercícios espirituais, a experiência de oração ou, no mundo contemporâneo, também a arte, a música, o contacto com a natureza, tantas outras formas que são uma exposição do que somos e da vida, a escutar o mistério que está presente, que está perto e se revela quando lhe abrimos a porta…

Essa ideia da proximidade é central no discurso e na prática do Papa. Ele insiste muito nela, como sinónimo da misericórdia e da atenção ao outro.

Ainda nesta [última] exortação apostólica ele fala muito da santidade de trazer por casa, poderíamos traduzir assim. Da santidade de todos os dias, da vida comum. Não apenas dos santos canonizados, mas das pessoas que lutam pela sobrevivência, das que estão doentes e continuam a sorrir, dos pais ou dos avós que dão as mãos às crianças e as ajudam a crescer, dos amigos que partilham momentos de alegria e de impasse… isso é expressão de um Deus próximo e vizinho.

E tem sido, no magistério do Papa Francisco, uma mensagem de reconciliação com Deus e, muitas vezes, até com a própria Igreja. Não é por acaso que tanta gente esteja a dar à Igreja uma segunda oportunidade com o Papa Francisco. Muitas vezes até se ouve dizer que ele é a única voz humana no contexto da ordem mundial, porque nos aproxima uns dos outros e aproxima-nos desse sentido fundamental que acreditamos que está em Deus.

Quase podemos dizer que há sedes que o Papa está a saciar em muita gente…

Não tenho dúvidas de que o trabalho dele tem sido, em grande medida, tocar as sedes dos corações e das periferias. Mesmo para aquelas situações em que não há uma resposta única e rápida, ele não tem medo de tocar as várias sedes e de tocar com ternura as sedes que as mulheres e os homens do nosso tempo transportam. E, nomeadamente, as vítimas, os excluídos, os mais pobres. Não é um acaso que ele tenha começado as suas viagens por Lampedusa, com os refugiados, os imigrantes…

Um dos perigos do discurso religioso é ser uma super-estrutura que anda por cima das nossas cabeças e não toca, não se infiltra na própria realidade e não se deixa ensopar de vida, não tem cheiro, não tem cor nem sabor. Muitas vezes, a religião é uma coisa inodora, virtual. O Papa traz realidade, traz verdade. O cristianismo, com ele, tem cheiro. Ele fala muitas vezes do cheiro, do toque, do sabor e é a experiência de um cristianismo vivido com os seus sentidos, com a realidade desperta. Isso toca muito as pessoas que trazem uma briga com uma religião desencarnada e, quando encontram um cristianismo encarnado no amor e na misericórdia, dão-lhe uma segunda hipótese.

Um dos capítulos é dedicado ao papel das mulheres nos evangelhos. O cristianismo e a humanidade têm algo a aprender com o “fluxo de realidade a modelar a fé” que o seu lado feminino lhe traz?

O Papa Francisco tem colocado deliberadamente essa questão na agenda eclesial, o que é muito importante. Há páginas do evangelho que não percebemos se não forem lidas também em chave do feminino. Há uma plástica da fé, uma tradução existencial da fé que só as lágrimas das mulheres, o rosto e a vida das mulheres é capaz de explicar. Há um patrimônio muito grande do feminino, nestes dois mil anos de cristianismo, que claramente precisa de ser melhor lido e ser mais frequentado.

Diz que, sobre Deus e o caminho espiritual, faz bem aos crentes escutar os não-crentes. O que pode um crente aprender, sobre Deus, com um não-crente?

A resposta mais óbvia é a sede: num não-crente, encontramos uma sede muitas vezes em estado bruto, em estado de pergunta, num grau de pureza… Nos automatismos da fé e no achar que sabemos, a ignorância que muitas vezes um não-crente tem, em relação à fé, permite-lhe ter um olhar crítico e livre que faz bem aos crentes.

Deus é um problema para todos, não é só uma questão para os não-crentes, Deus também é uma questão para os crentes. Deus é uma questão que nos une, não é uma questão que nos separa: Deus está em todos, crentes e não-crentes. Esse diálogo com os não-crentes é fundamental que aconteça, no catolicismo contemporâneo.

Vivemos num mundo dominado por uma indiferença, uma neutralidade, uma não-crença… É preciso dialogar. Os cristãos têm de ser atores de um diálogo infatigável com os não-crentes. É preciso um humanismo cristão, capaz de pensar articulações, pontes, proximidades, afinidades. Não é: ou, ou. Em tantos campos pode ser: e, e. E percebermos que podemos ser aristotélicos e platônicos, e amar a cultura grega e perceber o discurso cristão. O mundo de hoje precisa dessas pontes, desses diálogos. Temos muito a aprender uns com os outros…

Falamos de sedes espirituais, mas também há milhões de pessoas com sede física, “uma dura experiência de sacrifício e de prova”, como escreve, que têm de percorrer quilômetros só para transportar água. Como se devem escutar estas sedes que atingem tantas pessoas?

A [encíclica] Laudat Sì é um dos textos maiores do Papa Francisco e, sem dúvida, será um dos grandes textos do século XXI. Identifica a realidade do mundo de hoje, mostrando como a questão da água e da sede é absolutamente fundamental para o futuro do mundo. Muita da justiça ou da injustiça da ordem presente tem a ver com o acesso à água potável, com o acesso aos bens, à habitação, ao trabalho, o acesso às condições de uma vida digna. E a Igreja tem de ouvir: o Papa Francisco tem-nos ajudado muito a viver um cristianismo com os pés assentes na terra e capaz de ouvir a voz do sofrimento humano. Que se traduz também nessa realidade mais viva, mais literal, porque a sede, antes de tudo, não é uma alegoria. A sede é uma impossibilidade de viver assim, que tantas mulheres e homens nossos contemporâneos experimentam hoje na sua pele.

Olhando para o índice onomástico (outra forma de ler este livro), qual é o rio que une pessoas tão diversas como Emily Dickinson, rodeada de puritanismo norte-americano, Primo Levi, morto em Auschwitz, Eugène Ionesco com as suas personagens do absurdo, Etty Hillesum, Fernando Pessoa, Santo António Abade, São João da Cruz?…

É o rio da sede. Há um rio que atravessa a história, um caudal imenso, do qual nós fazemos parte e que tem como pontos luminosos os corações sedentos, aqueles que não desistiram de levantar mais alto o sentido da sua sede.

Se tivesse que escolher uma expressão para dizer qual é o “elogio da sede” a partir do evangelho, qual seria ela?

Bem-aventurados os que têm sede.

 

Com Informações da CNBB.