Ser bispo em tempos de pandemia

Por dom Wilson Tadeu Jönck – Arcebispo de Florianópolis

Já conversamos muitas vezes sobre o como a pandemia do coronavírus influenciou a caminhada pastoral de nossas comunidades. Paralisou as programações pastorais, não foi mais possível fazer as nossas reuniões, as celebrações só para um grupo limitado de fiéis, dificuldade de administrar os sacramentos. Mas, como a pandemia afetou a pessoa de nós bispos? Como nos sentimos nesta situação? Queremos neste momento refletir sobre a pessoa do bispo em tempo de pandemia. Mais precisamente, oferecer alguns elementos que possam ajudar o ler o que se passa na nossa vida em momentos como o tempo de pandemia.

1 – Dois padres – Dois padres trabalharam na mesma paróquia em tempos diferentes. O primeiro era cheio de iniciativas, tinha um grande espírito de liderança. Era do tipo realizador e fazia-se presente em todos os segmentos da vida social da paróquia. Não é de estranhar que sofreu forte oposição de segmentos da sociedade. Vinham ataques pelo Rádio local, pelo jornal da cidade. Discutia-se sobre suas atitudes na rua, nos botecos, e também na câmara de vereadores. Deixou uma marca profunda na cidade e um grande reconhecimento do povo.

O segundo padre assumiu a mesma paróquia uns vinte anos depois. Também chegou com um grande desejo de dinamizar a vida da comunidade. Tinha iniciativa e colocava-se a frente das iniciativas da comunidade que muitas vezes eram apresentadas por ele mesmo. Também foi solicitado a participar de organizações na sociedade. No andar do caminho começaram a aparecer oposições, algumas eram as mesmas que o primeiro padre teve que enfrentar, inclusive com a utilização do rádio e do jornal.

A situação dos dois era muito parecida, mas a reação foi bem diferente. O primeiro enfrentava a situação de frente. Ele mesmo dizia que as críticas o faziam mais forte. Elas funcionavam como um fortificante. Quanto mais apareciam, mais criativo e realizador se tornava. O segundo, por sua vez, desmoronou diante das críticas. Começou pela dificuldade de dormir, acompanhada logo pelos problemas estomacais. Veio a depressão e o pânico. A sua capacidade de realizar e propor foi diminuindo, as reclamações dos fiéis foram aumentando.

Como se pode ver são modos bem diferentes de enfrentar situações bem parecidas. Enquanto um se agigantava diante dos desafios, o outro se amedrontava e ia se apagando.

A pessoa, na vida do dia a dia, sofre influência de forças que estão fora: o ambiente, os acontecimentos, os relacionamentos. Por outro lado, sofre influência também das forças que estão no interior da pessoa: tendências, inclinações, sentimentos, os desejos, os pensamentos, não esquecendo o inconsciente. O modo como a pessoa age define em grande parte a sua identidade. A influência das forças externas depende das estruturas organizadas ao interno da pessoa. Cada pessoa tem seu modo de enfrentar as situações que envolvem a sua vida. É importante analisar o processo que leva ao agir humano.

2 – Emoção – O primeiro impacto com a realidade é sempre emotivo. São os sentidos que entram em contato com a realidade concreta ou imaginada. Na base do agir humano está uma emoção, não um pensamento. Magda Arnold descreve a emoção como a tendência a aproximar-se do que agrada, cativa, atrai, recompensa, ou afastar-se do que desagrada: ameaça, amedronta, prejudica.

Avaliação intuitiva – O contato com o objeto leva sempre a uma avaliação sensível. É uma avaliação imediata e que produz uma emoção que gera uma atitude intuitiva.

A mesma emoção produz atitude igual. E a repetição deste processo explica a origem do vício na vida da pessoa. O vício é uma atitude que acontece antes da presença da razão. A partir da emoção acontece imediatamente a ação. É assim que o comportamento de uma pessoa pode ser previsível. Basta suscitar uma emoção que a resposta será a mesma atitude. Ex. a pessoa que vê um rato dá um grito e sobe em uma cadeira, tenderá a repetir este rito sempre que acontecer a mesma cena. Outra situação: a criança que via o pai agredir a mãe e virava-se para se afastar, tenderá a fazer o mesmo gesto sempre que sentir a mesma coisa. O mesmo acontece com as atitudes de raiva, os vícios sexuais, atitudes infantis, a busca do que é gratificante, evitar o que exige sacrifício, preguiça, dificuldade a obedecer.

Avaliação racional – O ser humano não está condenado a agir como resposta a um impulso  intuitivo. Ele pode avaliar se essa atitude é boa ou má. Esta é uma avaliação qualitativa. Neste caso a atitude não é resposta automática, mas a resposta a uma emoção racional que pede uma deliberação. A repetição da atitude racional leva à vida de virtude. Ex. perdão, oração, castidade, ser padre, caridade, os sacramentos, enfim, todos os valores evangélicos.

Como se pode ver, tanto as atitudes de maturidade como as virtudes evangélicas se adquirem por este caminho. É como se fosse um segundo patamar, mas se consegue só com empenho, com esforço. Afinal, a virtude se adquire com exercício, treinamento. E o que fazer com os sentimentos e as emoções automáticas? Simplesmente reprimir? Não. O grande trabalho pessoal é colocar estas forças a serviço do objetivo. As emoções estão na base também da vida de santidade. Há uma emoção mais profunda quando se consegue atingir um objetivo que transcende o ser humano. Por exemplo, perdoar alguém, a prática das obras de caridade, viver as virtudes.

Pode acontecer, muitas vezes que se proclame um valor e até se empenhe em buscá-lo, mas na realidade se busca uma gratificação. Então acontece aquilo que o evangelho diz: construir sobre a areia. Vamos encontrar isto em tantos jovens que buscam o matrimônio, mas querem encontrar uma vida de satisfação. Também pode-se buscar o sacerdócio pelas compensações que a vida sacerdotal pode oferecer. Quando prevalece esta dinâmica, o fim será sempre uma decepção. É fundamental o uso dos meios oferecidos na busca dos objetivos propostos pelo Evangelho: oração, contato com a Palavra de Deus, os sacramentos, exercício da caridade.

O próprio Evangelho deixa alguns conselhos: jejum, esmola, oração, mortificação, renúncia, sacrifício. Há no ser humano uma tendência a buscar uma gratificação imediata no agir. Mas para se crescer na maturidade humana, como para desenvolver a vida de santidade é preciso ultrapassar este primeiro estágio. Como exemplo apresentamos a vida de humildade, a virtude da castidade, espírito de pobreza, atitude de obediência.

3 – As 4 operações conscientes e a emoção – Há uma concordância geral de que a emoção influencia o pensar e o agir humano humano. Mas como explicar? Rulla se serve das quatro operações presentes no agir humano apresentadas por Lonergan: experiência, compreensão, juízo de valor e decisão/ ação. Em um primeiro momento a emoção influencia o processo de discernimento que de consegue pelas três primeiras operações. A emoção pode distorcer o pensamento e a compreensão. Um pensamento confuso pode levar a um juízo equivocado. Por exemplo, olhar o sacerdócio só pelas gratificações que pode proporcionar (sucesso, conforto) pode levar a uma decisão que ocasionará muita dificuldade na vida sacerdotal.

Em um segundo momento, a emoção influenciará a vontade. Sabemos que a vontade que leva a ação. Executa aquilo que é julgado como um bem pela inteligência. Para entendermos a importância deste passo, basta dizer que é vontade a responsável pela concretização do ato de caridade, bem como todos os ensinamentos do Evangelho. O padre, o bispo consagram as suas vidas para concretizar na sua vida o ensinamento do Evangelho. Mais do que isto, só conseguirá comunicar o Evangelho se antes colocar em prática na sua vida. A  emoção influencia a vontade enquanto prontidão, disposição (willingness). Parece loucura de  Deus, confiar em algo tão frágil como a emoção para edificar a construção da vida cristã. Quando a pessoa não tem disposição, não se empenha para internalizar os valores do Evangelho. Assim o Evangelho não se torna vida.  Quando as emoções negativas dominam a vida da pessoa não consegue internalizar os valores mais altos – raiva, preguiça, mau humor, desejo sexual, vaidade, inveja.

O processo pode ser explicado assim. Uma emoção negativa pode reduzir a prontidão (willingness) para uma decisão e a prontidão diminuída reduz a liberdade para internalizar os valores do Evangelho. Por exemplo, sabemos da importância do perdão, mas nem sempre temos disposição para perdoar. Por outro lado, uma emoção positiva alimenta a disposição para internalizar as virtudes cristãs, mesmo quando esta virtude é exigente e não traz gratificação. Veja-se, por exemplo, o cuidar de um doente, visitar os prisioneiros, as renúncias, os sacrifícios, enfim o caminho da cruz. Não podemos falar de liberdade se não temos disposição para buscar os meios que levam a internalizar os valores admiramos. É fácil entender que o ponto importante na formação e educação é fortalecer a prontidão.

É bom lembrar que as motivações inconscientes são responsáveis por boa parte de nossas amarguras: busca de atenção e aplauso, de poder, inveja, desânimo, agressividade

4 – Burnout – Certamente já ouvimos falar neste termo. Muito se tem falado a respeito do cansaço na caminhada, falta de iniciativa. Aquilo que impulsionava o agir, parece que deixa de existir. O termo tem origem no lançamento das naves espaciais. Para se lançar uma nave no espaço usa-se uma nave menor que é acoplada à nave maior e tem como objetivo impulsionar a nave maior até a saída do espaço. Cumprido este objetivo ela é apagada e lançada no espaço. Daqui se toma a figura para descrever um fenômeno bem conhecido dos nossos dias. Alguém era muito animado, atuava com grande desenvoltura e acaba por entrar em uma espécie de desânimo, entra em um marasmo acompanhado com pessimismo e mau humor.

Este fenômeno está presente também na vida dos padres e dos líderes das comunidades cristãs. Há quem chamasse esta realidade de cansaço dos bons. Reconhecemos isto nos nossos padres que reclamam, dizem que nunca tiram férias e muitas vezes ficam dias inteiros longe de suas paróquias. Diminuem a sua eficiência pastoral, diminuem o espírito de disponibilidade e de inciativa para as atividades. Não se sentem atraídos para os momentos de oração e de celebração. Tudo parece custoso. Como aquela nave auxiliar parece que queima a mecha e não serve mais para nada.

5 – Acídia – Aquilo que é descrito no fenômeno Burnout parece que é bem conhecido dos mestres de vida espiritual pelo nome de acídia. Acídia é um dos pecados capitais e mais conhecido com o nome de preguiça. É bem descrito nas obras espirituais. São Gaspar Bertoni, fundador dos estigmatinos, deixou um livreto em que descreve mais de vinte manifestações da acídia. (cf.Acídia, Paulus, 2018).

Bertoni descreve a acídia como “uma tristeza, um enfado, um torpor de mente, tal fraqueza de ânimo, que afasta a vontade de fazer ou de começar alguma obra boa. E isso acontece justamente nas coisas espirituais, nas quais estão apoiadas a honra de Deus e a salvação do próximo. Para essas coisas, o acidioso prova aversão. A acídia se contrapõe à alegria espiritual, que nasce do amor e se compraz somente em Deus e nas coisas divinas”. O fôlego se torna arfante e vem a vontade de parar. A parada se torna fatal, pois não se deseja levantar para  continuar o caminho. Parece Elias em crise com Deus:” Basta, não sou melhor do que ninguém, deixa-me morrer”. A náusea pelas coisas espirituais e a apatia bloqueiam os passos e já não se trem vontade de rezar, de meditar, de celebrar a Eucaristia, de ler bons livros, de participar dos sacramentos, da catequese, dos momentos da comunidade, de fazer obras de caridade.

A acídia pode ser descrita, segundo Bertoni, como “um vírus que corta as pernas e pouco a pouco vai sugando a energia , até levar a pessoa a uma lenta morte espiritual, por asfixia, por paralização progressiva, depois de tê-la conduzido aos prazeres mais vulgares e estomacais, e a uma triste depressão espiritual, cheia de insatisfações e de crítica a tudo e a todos”.

São Gregório Magno enumera a filhas da acídia. São elas:

  •  A malícia, o enfado dos bens espirituais. Estão ligadas a ela  a tristeza ou falta de alegria no serviço divino.
  •  A irritabilidade, a indignação contra quem quer persuadir a fazer o bem. Liga-se a ela a amargura.
  •  O medo, para o qual não se aceitam os remédios indicados. Parecem lentos no agir. Liga-se ao medo a busca dos prazeres, o adiamento, a tepidez e a lentidão.
  •  Desânimo geral, acha-se impossível atingir o fim e então não se empenha minimamente. A ele se liga a sonolência, a abulia, a dissolução, o descuido, a superficialidade, a negligência, a fadiga e cansaço em observar os preceitos.
  •  A evasão para as coisas ilícitas. Liga-se a ela o afastar-se das coisas espirituais, o tédio, a inconstância e a entrega aos prazeres dos sentidos e do mundo.

6 – Crise – É um sintoma de que um processo não pode continuar como está. Isto acontece nas atividades, e também na vida das pessoas. Ex. a crise no casamento é sinal que algo deve mudar. Como não posso mudar o outro, é sinal que alguma coisa deve mudar em mim. Situações como a pandemia podem colocar a vida em crise. É um fator externo à vida da pessoa. É uma situação que pede que se mude a rotina da vida. Pode ser temporário ou pode ser para sempre. Neste sentido, a crise pode ser uma oportunidade que beneficiará a própria vida.

Uma grande tentação é viver o segundo patamar sem deixar as gratificações do primeiro patamar. Para crescer na caminhada espiritual a pessoa é necessário deixar tais gratificações pelo caminho. Isto pode acontecer através de uma decisão, uma escolha. Mas tantas vezes acontece em um momento de crise.

Texto preparado para a 58ª Assembleia Geral da CNBB